sábado, 12 de dezembro de 2020

A Fuga de D. João VI de Portugal para o Brasil (Novembro de 1807) - REPOSIÇÃO




Ainda a propósito das invasões francesas a Portugal (ver aqui), que tanta importância acabariam por ter na história da independência do Brasil, repomos hoje um texto do historiador Oliveira Martins.
Nele se aborda a primeira daquelas invasões, comandada por Junot, com a precipitada e dramática fuga (há muito cogitada) da corte portuguesa para terras brasileiras.

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"(…) Quem faria face a Napoleão, cuja coorte atravessara a Espanha e pisava já o solo português?

Não seria o príncipe-regente, nem a rainha doida, nem as altas classes ensandecidas, nem o povo faminto, indiferente, sebastianista.


À voz do verdadeiro Anti-Cristo português, que foi Junot, desabou tudo por terra!
A nação, roída nos ossos pelo térmita infatigável, o jesuíta, nem já era o esqueleto, era apenas o pó de um cadáver.

Três séculos antes, Portugal embarcara, cheio de esperanças e cobiça, para a Índia; em 1807 (Novembro, 29) embarcava num préstito fúnebre para o Brasil.


A onda da invasão varria diante de si o enxame dos parasitas imundos, desembargadores e repentistas, peraltas e sécias, frades e freiras, monsenhores e cadastrados.


O embarque para o Brasil, em Lisboa (Novembro de 1807)


Tudo isso, a monte, embarcava, ao romper do dia, no cais de Belém.

Parecia o levantar de uma feira e a mobília de uma barraca suja de saltimbancos falidos: porque o príncipe, para abarrotar o bolso com louras peças de ouro, seu enlevo, ficara a dever a todos os credores, deixando a tropa, os empregos, os criados, por pagar.

Desabava tudo a pedaços; e só agora, finalmente, o terramoto começado pela natureza, continuado pelo marquês de Pombal, se tornava um facto consumado.

Os cortesãos corriam pela meia-noite as ruas, ofegantes, batendo às lojas, para comprarem o necessário; as mulheres entrouxavam a roupa e os pós, as banhas, o gesso com que caiavam a cara, o carmim com que pintavam os beiços, as perucas e rabichos, os sapatos e fivelas, toda a frandulagem do vestuário.

D. João VI
Na altura do embarque para o Brasil era o príncipe regente de Portugal
(sua mãe, D. Maria I, enlouquecera havia anos, mas continuava a ser rainha).


Era um afã, como quando há fogo; e não havia choro nem imprecações: havia apenas uma desordem surda. Embarcavam promiscuamente, no cais, os criados e os monsenhores, as freiras e os desembargadores, alfaias preciosas e móveis toscos sem valor, nem utilidade.

Era escuro, nada se via, ninguém se conhecia.
Os botes formigavam sobre a onda sombria, carregando, levando, vazando bocados da nação despedaçada, farrapos, estilhas, aparas, que o vento seco do fim dispersara nessa noite calada e negra.

(…) O príncipe regente e o infante de Espanha chegaram ao cais na carruagem, sós: ninguém dava por eles; cada qual cuidava de si, e tratava de escapar.
Dois soldados da polícia levaram-nos ao colo para o escaler.


Rainha D. Maria I, mãe de D. João VI.
Morreria no Brasil, em 1816.

Depois veio noutro coche a princesa Carlota Joaquina, com os filhos.

E por fim a rainha (D. Maria I), de Queluz, a galope. Parecia que o juízo lhe voltava com a crise. Mais devagar!, gritava ao cocheiro; diria que fugimos!

A sua loucura proferia com juízo brados de desespero, altos gritos de raiva, estorcendo-se, debatendo-se às punhadas, com os olhos vermelhos de sangue, a boca cheia de espuma.
O protesto da louca era o único vislumbre de vida. O brio, a força, a dignidade portuguesa acabavam assim nos lábios ardentes de uma rainha doida!

Tudo o mais era vergonha calada, passiva inépcia, confessada fraqueza.


O príncipe decidira que o embarque se fizesse de noite, por ter a consciência da vergonha da sua fuga; mas a notícia transpirou, e o cais de Belém encheu-se de povo, que apupava os ministros, os desembargadores, toda essa ralé de ineptos figurões de lodo.

E – tanto podem as ideias! – chorava ainda pelo príncipe, que nada lho merecia. D. João também soluçava, e tremiam-lhe muito as pernas que o povo de rastos abraçava.


Princesa D. Carlota Joaquina.
Esposa do príncipe regente (futuro rei D. João VI)

A esquadra recebera 15 000 pessoas, e valores consideráveis, em dinheiro e alfaias.

Levantou ferro na manhã de 29, pairando em frente da barra até o dia seguinte, às sete horas, que foi quando Junot entrou em Lisboa. Os navios largaram o pano, na volta do mar, e fizeram proa a sudoeste, caminho do Brasil.

Enquanto a esquadra esteve à vista, pairando, os altos da cidade, donde se descobre o mar, apareciam coroados de povo mudo e aflito.


As salvas dos navios ingleses que bloqueavam o Tejo troavam lugubremente ao longe.

O sol baixava, a esquadra perdia-se no mar, ia-se toda a esperança, ficava um desespero, uma solidão…

Soltou-se logo a anarquia da miséria, e na véspera da chegada do Anti-Cristo, Lisboa correu risco de um saque.


Chegada da família real portuguesa ao Brasil.
Aportaram primeiro a Salvador, Bahia (Janeiro de 1808).
Seguiram depois para o Rio de Janeiro, onde entraram a 7 de Março do mesmo ano.

Napoleão estava burlado.

O príncipe D. João, a bordo com as mãos nos bolsos, sentia-se bem remexendo as peças de ouro: ia contente com a sua esperteza saloia, única espécie de sabedoria aninhada no seu gordo cérebro. Bocejava ainda: mas porque o enjoo começava com os balanços do mar.

É o que sucede à história, com os miseráveis balanços do tempo: vem o enjoo incómodo e a necessidade absoluta de vomitar.”

Oliveira Martins (1845-1894) - História de Portugal - 1.ª ed. - 1879 - Lisboa - Portugal

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